Ana Paula Oliveira:
Um halo um elo, saudade de pedra


São Paulo

Abertura:
15 de junho, 2024/ 11h–16h

Período de visitação:
15 de junho – 20 de julho de 2024

A Galeria Marcelo Guarnieri tem o prazer de apresentar, entre 15 de junho e 20 de julho de 2024, “Um halo um elo, saudade de pedra”, exposição individual de Ana Paula Oliveira (1969, Uberaba – Minas Gerais) em nossa unidade de São Paulo, que conta com texto crítico de José Augusto Ribeiro. A mostra reúne um conjunto de esculturas inéditas que surgem dos estudos em botânica desenvolvidos pela artista durante os últimos quatro anos, por onde tem investigado a dinâmica do funcionamento das plantas e das estratégias da natureza.   

“Um halo um elo, saudade de pedra” está formada por uma variedade de materiais, desde esqueletos de insetos, casca de coco e madeira, até metais como ferro, alumínio e latão. Interagem entre si por meio das esculturas criadas pela artista, que com seus gestos e soluções formais propõe uma relação mais simbiótica entre materiais orgânicos e industriais, entre humanos e mais que humanos. A ideia de elo é explorada tanto a nível material, quanto a nível funcional, quando por exemplo produz pequenas esculturas de exoesqueletos metalizados que podem adquirir a qualidade de acessórios utilizáveis. O programa da exposição também contará com uma performance realizada por uma equilibrista convidada, que ativará algumas peças através de ações interativas que colocam em questão a noção de estabilidade.

Um dos trabalhos centrais da exposição, intitulado “Córgo” (2020-2024), utiliza dormentes de madeira que outrora foram trilhos de trem. Nessas peças, o chumbo escorrido corre estagnado pelos veios seculares da madeira, evocando a imagem de um pequeno rio. A escolha pela diversidade de metais corresponde ao desejo de explorar a luminosidade de cada um, criando, em seu conjunto, uma particular gama de tons.

As peças de parede da exposição são estruturadas a partir de presilhas, suportes de encaixe e batedores de porta, que complementam as esculturas. Outras obras incluem “Cardume particular” (2020-2024), esculturas de chão fundidas com piranhas, e “Para Munch todos os gritos” (2020-2024), um conjunto de côcos secos e fundidos que, através dos contornos de suas texturas e orifícios, aludem à famosa pintura “O Grito” de Edvard Munch.

Além deste conjunto de trabalhos inéditos, podem ser vistos na exposição alguns trabalhos da série “Estudos para alguma coisa significativa” (2014), formados por colagens realizadas com diversos materiais, textos e imagens extraídos do livro “Geologia Aplicada à Engenharia”.

Motivada pelo vigor da matéria viva, Ana Paula Oliveira cria, com suas esculturas e instalações, situações de tensão e equilíbrio entre materiais ora muito brutos, ora muito delicados. Seus trabalhos parecem nos colocar num estado de suspensão, testemunhas de um movimento que está prestes a ocorrer, mas incapazes de ter qualquer tipo de controle sobre o que se apresenta. A artista provoca diversos tipos de encontros em suas peças e instalações, como por exemplo entre animais – vivos, taxidermizados ou fundidos em chumbo e toras de madeira, blocos de ferro ou placas de vidro; contrapondo, através de gestos pujantes, a leveza de um à força do outro.

Participou de inúmeras exposições individuais e coletivas, destacando-se as seguintes instituições: MAM – Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Brasil; MAM – Museu de Arte Moderna de São Paulo, Brasil; MUBE – Museu Brasileiro de Escultura, São Paulo, Brasil; Centro Cultural São Paulo, Brasil; Caixa Cultural, Rio de Janeiro, Brasil; Paço das Artes, São Paulo, Brasil; Capela do Morumbi, São Paulo, Brasil; Instituto Tomie Ohtake, São Paulo, Brasil; Casa da imagem no Beco do Pinto, São Paulo, Brasil; CEUMA – Centro Universitário Mariantonia, São Paulo, Brasil; Fábrica Asa, Guimarães, Portugal; Museu de Arte Contemporânea de Ribeirão Preto, São Paulo, Brasil; Casa de Cultura do Parque, São Paulo, Brasil.

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Um halo, um elo, um desenlace
por José Augusto Ribeiro

Nesta exposição, elementos animais, vegetais e minerais interagem na conformação de unidades e estruturas que carregam um rumor de vida latente. Os organismos de fato estão mortos – os pássaros, os peixes, os insetos, as plantas, ramos, frutos, sementes. E estão todos presentes, sob capas metálicas, empalhados, mas mortos. Já as coisas em que se converteram e as situações que passaram a integrar são vívidas, e concentram uma espécie de estase energética: como se uma alta carga de energia se acumulasse, sem vazão, e em estado de potência, nesses corpos e materiais folheados de cobre, fundidos em alumínio e latão, cobertos total ou parcialmente por chumbo.

Tal saturação de energia é notável, por exemplo, na agitação virtual das piranhas de metal sobre o solo, maciças, pesadas e reunidas em grupos, em atrito umas com as outras, aparentemente em contorções, entre um mergulho virtual de parte de seus corpos no chão e o esboço de um salto para além dessa superfície. A mesma intensidade está no corpo de borboletas, cigarras, abelhas e libélulas que emanam força e um brilho uniforme, a partir da fragilidade de suas estruturas físicas. Até na morosidade com que o chumbo escorre e se deposita sobre os dormentes de madeira, essa vitalidade se insinua, ao evocar fios e poças d’água, em uma corrente que se arrasta estreita, quase como um córrego, meio corre-e-para, vai-não-vai. Diante dessas coisas, é de se interrogar: o que aqui tem vida e o que não tem, o que é vivo e o que é morto?

Mas perguntar-se sobre isso não é o mesmo que dizer que tais elementos teriam adquirido “outra vida”, ou uma “vida nova”. Muito pelo contrário. A produção recente de Ana Paula Oliveira parece colocar esses seres (que recolheu mortos dentro e nos arredores de seu ateliê), em uma existência sem evolução, sem desenvolvimento, fora de um ciclo vital de crescimento e decadência. Uma existência, talvez, próxima de objetos – afinal, alguns se encontram disponíveis para uso, como adornos. Não é então por acaso que esses insetos se parecem tanto com joias, broches e pingentes, ou com itens extraordinários de um museu de história natural. De qualquer modo, trata-se, mesmo, de uma existência refreada, que, no entanto, é capaz de relacionar e estabelecer força de tração entre esses organismos sem vida e matérias condutoras de eletricidade e calor; entre estruturas que são inanimadas, as condições variáveis de suas superfícies tornadas reflexivas e luminescentes (conforme a iluminação do ambiente onde se encontram, da presença ou não de alguém diante delas, etc.), e o dinamismo que a configuração espacial da exposição confere a cada uma de suas partes.

A natureza que se assoma nestes trabalhos surge, assim, corrompida, torta e desfigurada, distante das idealizações de essência e pureza que se projetam como ideia, ou como mito, sobre o universo físico. Em um plano mais geral, Ana Paula Oliveira nem parece fazer a distinção entre natureza e cultura. O que a artista manifesta agora – e mais uma vez, como já o fizera em obras anteriores –, é uma curiosidade biológica e estética por processos transicionais da forma; a partir de um espectro amplo de possibilidades, mas que vai direto, sem desvio, da materialidade do mundo natural ao informe; que vai do mundo das coisas, das aparências da vida prática (a montagem dos trabalhos conta apenas com peças de casa de ferragem, por exemplo, não há itens construídos especialmente para a apresentação das obras), direto para uma monstruosidade sem classificações.

Por isso os trabalhos tendem a gerar atração e repulsa, em simultâneo. Os principais procedimentos da artista nesta mostra são os de revestir e, com isso, apagar parte das características físicas dos animais, com metal, matéria muito mais pesada que os corpos que encobre. O processo que prepara esses bichos para conservação e exibição, que os recobre com uma cintilação regular e completa, desaparece, também, com suas cores e detalhes de sua anatomia. As operações, aliás, reforçam isso mesmo: um desaparecimento. E o resultado é uma natureza bizarra, fora de sua ordem, transtornada, a tal ponto que talvez nem seja exagero dizer que a arte aqui, quando se realiza, é já um acontecimento póstumo.

Desde o início de sua trajetória como artista, no final da década de 1990, Ana Paula Oliveira produz situações-limite. Uma das características marcantes de sua produção envolve a reunião de matérias várias (vidro, borracha, metal, madeira, plástico, graxa, animais vivos), para a construção de estruturas que, de cara, são postas no extremo de suas possibilidades de existir. Ora é a própria construção que corre o risco de desabar, ora é a graxa que dá pinta de que vai escapar e arruinar tudo, ora é o saco com peixes ornamentais prestes a estourar... Aparentemente, tudo costuma estar sob o risco de ir para o buraco.

E a despeito dos materiais, das dimensões que alcançam, monumentais ou minúsculas, a despeito das soluções de montagem que mobilizam, os trabalhos da artista inspiram instabilidade. É comum que tenham o aspecto de uma articulação provisória. Principalmente m peças anteriores, é notável, ainda, o esforço que determinados elementos exercem e a energia que dispendem para sustentar a estrutura de que são constitutivas. Não raro, há drama nesses arranjos. Vez ou outra, há também algo cenográfico ou teatral.

Em comparação, então, com trabalhos anteriores, as obras componentes de “Um halo, um elo, saudade de pedra” são desimpedidas. Estiram-se, como as anteriores, porém com um desembaraço, ou uma agilidade, infrequente na produção. De cara, por exemplo, não dependem de amarrações que insinuam estar por um triz de se desfazerem. As peças de Ana Paula Oliveira que ocupam agora a Galeria Marcelo Guarnieri se dispõem soltas no espaço, apoiadas sobre o chão, sobre macacos hidráulicos, ou simplesmente penduradas na parede. Algumas são fisicamente delicadas, mas são todas também fisicamente desprendidas. Na maioria, não há nada que enganche ou mantenha suas partes atadas. E talvez desse modo os trabalhos apontem para um desenlace na obra – não como solução ou como desfecho de alguma coisa, mas como desdobramento de suas próprias singularidades. Em direção, tudo indica, de uma linguagem sem amarras normativas, livre de prescrições. À solta.