Carlos Fajardo: Dentro

Ribeirão Preto

Abertura:
25 de agosto, 2018 / 15h–19h

Período de visitação:
25 de agosto – 11 de outubro, 2018

Dentro
por Henrique Xavier

Dentro. Um sutil e finíssimo risco branco atravessa de ponta a ponta a transparência. Superfícies transparentes em acrílico se encontram em arestas para formar um cubo vazio com 30 cm de lado. Os sutis riscos brancos percorrem o interior das paredes de acrílico transparente, gerando, dentro do cubo, a imagem de um segundo cubo. Um dentro do outro, sendo que a segunda figura geométrica está levemente deslocada em um giro. Um giro que nos faz ver ilusórias paredes que não estão lá. Realizada em 1966 e intitulada neutral, vem a ser uma das primeiras obras de Carlos Fajardo e está agora dentro de uma nova galeria em 2018. Ao olhar através das paredes transparentes e mesmo invisíveis deste duplo sólido geométrico, você percebe a presença de doze obras do artista a ocupar o “cubo branco” que constitui o interior da Galeria Marcelo Guarnieri, em Ribeirão Preto. São obras de épocas distintas, embora a sua maior parte tenha sido realizada nos últimos dois anos, algumas, inclusive, inéditas. Você se pergunta pelo motivo de inaugurar a mais recente mostra de um artista contemporâneo, em plena produtividade, justo com uma obra de cinquenta e dois anos, ou seja, qual o sentido de colocar neutral dentro do mesmo espaço com as obras atuais?
Ao observar o cubo de acrílico você não apenas contempla, através de sua transparência, as demais obras no espaço da galeria, mas, ao mesmo tempo, percebe na cristalina superfície a presença de todo o entorno ser duplicado ao ser refletido; e, neste tênue reflexo, toda a exposição é devolvida mais uma vez para dentro do cubo. Há uma sobreposição entre transparências e reflexos e entre a galeria, o cubo de acrílico, as demais obras e você. Não se trata de uma retrospectiva ou antologia com obras datadas, mas da interação entre obras reunidas como parte de uma única e mesma experiência atual. Além disto, mais do que uma sequência de obras, lado a lado, temos uma montagem que concebe a galeria com as obras como se estas fossem uma única instalação. Sobressai-lhe uma segunda questão: poderia o cubo, que em seus reflexos sutilmente traz as diversas obras para dentro de si, alegorizar a situação da exposição no interior do “cubo branco” da galeria?
Certamente os reflexos aproximam esteticamente neutral das obras mais novas, estas são compostas por grandes superfícies brilhantes, transparentes, reflexivas, semirreflexivas e coloridas. A galeria e a exposição toda é reciprocamente espelhada por estas diversas superfícies, a partir de diferentes matizes de desvios de luz e de cor. Outra característica da exposição comum ao cubo é a forma ortogonal do quadrado e do retângulo que se espalha praticamente por todas obras. Porém, ambas características produzem apenas aproximações superficiais se nos esquecermos daquilo que de dentro do cubo põem em movimento a sua forma duplicada: uma torção, ou seja, o deslocamento que desde dentro é capaz de produzir uma ilusão.
Você admira uma grande obra de vidros coloridos ao lado de neutral e irrevogavelmente, também, contempla, por intermédio dos reflexos, uma segunda obra espelhada sem cor que reciprocamente espelha a colorida. As dimensões e a forma com que as obras são dispostas no espaço são pensadas para que por meio de seus reflexos uma dialogue com a outra, ou melhor, uma esteja dentro da outra, obras postas face a face, como dois espelhos a se olharem, espelhando-se ao infinito.
A vasta área de cor azul reflexiva desperta a sua atenção por trabalhar com algo que lhe recorda uma técnica tradicional da pintura: a ‘velatura’; técnica onde o pintor sobrepõe finas camadas de tinta semitransparente. A obra faz algo similar, pois a sua extensa superfície em um peculiar tom azul é somente obtida a partir da sua sobreposição com as cores amarela e laranja que, por sua vez, produzem os tons roxo e verde que por si mesmos não existem, mas são efeitos de um jogo de véus entre transparências de cores em vidro. As lisas e regulares superfícies de cor, contudo, produzem algo contrário à abstração da cor em si, pois criam, em seus reflexos, um universo de imagens coloridas onde, você, espectador, em meio as demais obras da exposição, é capturado. Diante de tais obras sentimos um estranho prazer, pois temos nossas imagens instantaneamente transformadas em arte, multiplicadas e cobertas por belíssimas e reluzentes cores. Porém, a sobreposição dos vidros reflexivos forma imagens de um modo em si deslocado, pois os diferentes ângulos em que os vidros estão apoiados na parede produzem o descasamento entre os traços e as áreas de cor das imagens refletidas, produzindo a ilusão de uma espécie de fantasmagoria em que as imagens não conseguem estabilizar-se em um único corpo, mas pairam sempre aquém ou além de si mesmas.
A fantasmagoria de imagens se torna ainda mais clara na obra de longas superfícies reflexivas sem cores, onde as subdivisões das placas apoiadas, umas sobre as outras, fazem com que na obra se multiplique algo como que seis diferentes tipos de espelhos verticais. É uma sensação bela e estranha ao mesmo tempo: um ritmo de tons de cinzas e de transparências, de um e de múltiplos nós refletidos nas superfícies. Um ritmo de imagens que em uma ilusão se estilhaça, pois cada novo conjunto de imagens é formado em um ângulo distinto do anterior e, assim, as suas fronteiras imagéticas não se encontram neste contínuo de reflexões. Algo com se a grande superfície reflexiva de Fajardo funcionasse como um espelho quebrado, fazendo com que de dentro de seus cacos sejam devolvidas, simultaneamente, a mesma e outra imagem de nós mesmos.
Como aproximar esta presença reflexiva às obras de outras épocas que não operam por espelhamentos, como as duas peças quadradas de 1984? A primeira peça é uma superfície translúcida que trabalha com algo tão imaterial, invisível e envolvente quanto a luz refletida, pois a obra porta dentro de si uma essência que se expande no ar, compondo a instalação de um sutil campo perfumado ao seu redor. A segunda peça da mesma data, ao contrário, não possui nada de etéreo, é uma compacta presença, completamente opaca e maciça, um bloco de azul escorado contra a parede, puro pigmento prensado, um acúmulo de um azul que, por dentro, possui mais azul. Mais curioso ainda é relacionar os reflexos ao grande emaranhado de cipó de 1998 que desarticula a ortogonalidade das obras e da galeria, um elemento definitivamente estranho dentro do espaço, um volume informe que, tal qual o azul, possui cipó e mais cipó em sua interioridade. Como refletir um emaranhado desde dentro?
Esbocemos o caminho de uma resposta a partir de uma outra obra, concebida em 1989, e que, em tudo, também, parece distar da delicada manipulação da luz pelos reflexos. A obra é composta de cerca de treze mil tijolos empilhados, formando o volume regular de uma pirâmide negativa e invertida no interior de um grande paralelepípedo de um metro de altura com quatro lados de quatro metros. A sua proporção, intencionalmente adequada à interação do corpo humano, põe os tijolos à altura da mão, evocando a intenção da manipulação e do toque, mas, mais que isso, ela gera uma forte interação ótica. A simetria da pirâmide invertida nos convida a adentrarmos visualmente a obra pelo olhar que se debruça e rola adentro na sequência decrescente de degraus de tijolos que se afunila para o interior da pirâmide até alcançar, talvez, o elemento mais importante da obra: o buraco que a faz emoldurar um pequeno pedaço da superfície do chão da galeria. Uma vez que os olhos alcançam o chão, um sistema é fechado: os olhos produzem um looping, percorrem a superfície interna da pirâmide, “tocando” o chão, e através desta extensa superfície da galeria, eles voltam ao seus pés. Por meio desta volta, a obra é capaz de ativar uma estranha percepção da superfície onde você se encontra. Olhar para o centro da pirâmide é sentir o próprio solo, é sentir seus próprios pés, é sentir-se de pé observando algo e, neste mesmo espaço e tempo, também poder ser observado. Eis que a tua presença e a da galeria, tal qual na rede recíproca de reflexos, são mais uma vez devolvidas pela obra em uma experiência que te recoloca no mundo por meio da arte.
Em meio a esta presença estética abrem-se mais perguntas. Como, mais uma vez, re-significar o deslocamento dentro da exposição, então, a partir de uma grande obra fotográfica inédita? A obra se encontra dobrada desde um corte ao seu centro: dois grandes espelhos, dois vidros esverdeados e duas imagens fotográficas compondo três superfícies divididas ao meio. Temos três tipos de imagens: em primeiro lugar, os espelhos criam uma espécie de borda que traz para dentro de si a própria galeria, as obras e você -que se encontra ao redor da fotografia. Em segundo lugar, o vidro, levemente esverdeado e deslocado em relação imagem fotográfica, produz uma suave, mas presente velatura de reflexo e cor que se misturam a imagem. Por fim, entre o vidro e o espelho, a imagem fotográfica é composta de duas grandes superfícies vermelhas e quase abstratas, são manchas de luz e sombra, produzindo um formato orgânico e sem definição. Porém, ao caminhar ao redor da fotografia, tem-se a estranha impressão de ver enormes lábios avermelhados procurando enviar beijos ao seu corpo. Um beijo ou quase? Mais uma tocante pergunta que te faz, novamente, e de um outro modo, adentrar a exposição?