Carlos Fajardo:
Forse che sì, forse che no /
Talvez sim, talvez não
São Paulo
Abertura:
20 de maio de 2023 / 10h–17h
Período de visitação:
20 de maio – 24 de junho de 2023
A Galeria Marcelo Guarnieri tem o prazer de apresentar, entre 20 de maio e 24 de junho de 2023, “Forse che sì, forse che no / Talvez sim, talvez não”, segunda exposição individual do artista Carlos Fajardo na sede da galeria em São Paulo. A mostra reúne um conjunto de 12 construções tridimensionais compostas por sobreposições de vidros laminados coloridos e transparentes que, circunscritos ao formato de uma caixa retangular, distribuem-se ritmicamente pelas paredes da galeria. Em “Forse che sì, forse che no / Talvez sim, talvez não”, Fajardo dá continuidade à investigação que desenvolve há mais de cinco décadas sobre as relações espaciais entre o corpo, o objeto e a arquitetura, realizada nesta ocasião através do trabalho com materiais reflexivos, transparentes e luminosos que põem em dúvida o sentido da visão. A exposição conta com texto de apresentação do crítico e curador Diego Matos.
Embora se construam a partir de ângulos retos, as obras de Carlos Fajardo não pretendem convocar leituras fechadas. Os quadrados, os espelhos e as repetições podem ser, em um primeiro momento, identificados como recursos de uma linguagem assertiva, mas dentro da investigação do artista, eles são utilizados como ferramentas que abrem espaço para a ambiguidade. As peças apresentadas na exposição são formadas por sobreposições de superfícies de vidro dispostas em um determinado ângulo cuja inclinação produz um efeito de multiplicação de cores e planos, permitindo ao espectador acessar uma terceira dimensão. As doze caixas que ocupam a extensão das duas paredes opostas que configuram o espaço expositivo, ressoam e multiplicam o formato retangular da arquitetura da galeria, formando um corredor de espelhos coloridos e reflexos imprecisos. Cada caixa é composta por dois quadrados de cor, mas essas cores também não são fixas, variam a depender da incidência da luz e do movimento do olho de quem vê. Um retângulo, outro retângulo, e mais outro: repetem-se como a mesma nota musical inscrita numa partitura. Um mantra desconcertante. E é nos deslocamentos dos corpos e nas inclinações dos eixos que os espelhos vibram – talvez sim, talvez não.
Carlos Fajardo nasceu em 1941 em São Paulo, onde vive e trabalha. Sua obra possui grande relevância no panorama da arte brasileira assim como sua atuação de mais de 40 anos como professor. Ao longo de sua carreira, participou de diversas exposições importantes no Brasil e no exterior, dentre as quais Jovem Arte Contemporânea, no Museu de Arte Contemporânea da Universidade de São Paulo (MAC-USP), em 1967, organizada por Walter Zanini. Participou da 9ª, 16ª, 19ª, 25ª e 29ª edição da Bienal de São Paulo, respectivamente em 1967, 1981, 1987, 2002 e 2010. Representou o Brasil na Bienal de Veneza em 1978 e em 1993. Participou da 1ª e da 4ª edição da Bienal do Mercosul, em Porto Alegre. Com Nelson Leirner, José Resende, Geraldo de Barros, Wesley Duke Lee e Frederico Nasser integrou, de 1966 a 1967, o Grupo Rex. O grupo questionava as instituições e o modus operandi do sistema de arte por meio de intervenções, publicações, palestras, projeções ou encontros. Em 1970 fundou junto a José Resende, Luiz Paulo Baravelli e Frederico Nasser a Escola Brasil, um “centro de experimentação artística dedicado a desenvolver a capacidade criativa do indivíduo” que foi importante não só na formação de muitos artistas brasileiros, mas também no amadurecimento das discussões sobre ensino e aprendizado de arte no país.
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Talvez sim, talvez não:
Os labirintos espaço-temporais de Carlos Fajardo
por Diego Matos, maio de 2023
Não vá mostrar
todos os lados das coisas
preserve, você,
uma margem
de indefinição
Jean Luc-Godard(1)
Por meio das superfícies, os espaços virtuais da presença(2)
Em tempos de uma profusão mecânica e virtual das imagens com seus hipertextos, da impregnação das narrativas publicitárias, e de uma necessidade literal pela representação, Carlos Fajardo (São Paulo, 1941) nos oferece pela arte um lugar de total ausência dessas forças do capitalismo 24/7(3). Se vemos uma elegância objetiva em sua produção, com economia de signos e meios, há também uma radicalidade cortante que nos evoca um possível desamparo, e a necessidade vital do enfrentamento da arte pela presença.
Não há imagem de smartphone ou texto que substitua a experiência possível com seus trabalhos. Na apresentação ritmada de suas 12 obras que compõem sua nova série, há um movimento a ser feito por cada um de nós: percorrer o espaço que abriga uma por uma dessas peças; abrir o olhar para um horizonte que é virtual; construir fronteiras entre cores, e entre tantas outras experiências espaço-temporais.
Há uma natureza lacônica na obra de Fajardo. Em razão disso, na gestão do tempo, sua obra possui também uma dimensão pública incontornável e incontrolável. Ela fala pela maneira como ela trabalha o espaço da experiência. Acontece na produção do artista uma sedimentação precisa da ideia de que a obra de arte só ganha razão de ser quando é posta em um jogo permanente de diálogo com quem a vê em determinada situação espacial.
Além, identifica-se um silêncio, uma forma de oposição ao desejo expressivo da arte, seja pelas figuras de linguagens, seja pelas formas de representação da realidade. Isso não quer dizer que estamos a falar de algo dormente, em permanente expressão de passividade ou mero recurso de evocação da beleza. O acesso ao belo acontece sim, só que referendado por um cuidado à execução, ao equilíbrio das formas e à coerência conceitual.
No contexto expositivo de Talvez sim, talvez não(4), um gesto formal e material determina um conjunto de trabalhos, que se repetem em todas as unidades. São doze objetos com as mesmas características materiais, todos sem título. Há uma única razão dimensional entre elas, já que a variação e a diferença acontecem pela presença das cores e pela interação das partes bicolores. Cada um dos retângulos pretos em madeira, que abrigam lâminas de vidro coloridos por películas específicas de cor, resguardam ao fundo, em paralelo, um espelho longitudinal. É ele o elemento que devolve a imagem, fazendo com que haja um percurso reverso de reação.
Dada a imprecisão das imagens que se formulam a partir desse jogo de superfícies de vidros e espelhos, é possível notar que nem todas as lâminas estão paralelas. Uma delas está em diagonal, promovendo uma sobreposição oblíqua dessas superfícies transparentes. Percebe-se, assim, um palimpsesto visual que grava uma imagem virtual ao fundo impregnada por uma dada cor hegemônica. A própria cor não é estática, ela muda sutilmente a partir do ponto do qual se olha e da presença luminar que ali opera. Percebe-se um encontro especial entre a geometria da física ótica, reflexiva e refratária, com o gesto artístico ali fundamentado.
Ademais, há entre elas a possibilidade de contaminação e incerteza que atravessa o olhar de quem as observa. Mergulhar a visão em cada uma dessas peças de dupla cor - verde e rosa, azul e laranja, cinza e azul, etc -, é estar aberto aos descaminhos labirínticos da vista, um lugar permissivo ao virtual. Portanto, um aspecto que se acende de maneira cirúrgica na obra do artista é a virtualidade como fenômeno de representação da vivência espaço-temporal. Falar de virtual, muito além da compulsória oposição ao ambiente material da concretude da vida, é talvez a intenção sublinhada por esses trabalhos.
É, desse modo, a virtualidade como grau de evidência e possiblidade, a abertura de caminhos sobre os quais não temos a absoluta certeza de suas distâncias, amplitudes, partidas e chegadas. Ficamos então em um lugar paradoxal, que eu desconfio ser parte de um corpo de intenções do artista: uma obra tão cristalina, em termos de recursos e de nudez dos materiais, acaba por constituir uma situação que não se materializa. Salvo engano, essa expressão da materialidade só permanece pelo registro da imagem que guardamos na memória ou pela fotografia ou filme produzido por algum dispositivo tecnológico.
Diria que há uma velada dimensão expressiva em sua obra, algo que veio a costurar uma prática artística de mais de meio século: um movimento interrupto de subversão da ideia de superfície e da potência de compô-las. Acredito ser essa uma das percepções críticas mais alusivas ao legado do Fajardo. Há um jogo dimensional de superfícies que traem constantemente o olhar, impulsionando o corpo de quem as observa a agir. Em certo sentido, é o artista um propositor de espaços; esses completamente dependentes de seu para imediato, o(s) tempo(s).
É algo que coaduna com a ideia ensejada em “O tempo presente do espaço”, ensaio de 1978 em que Robert Morris introduz o conceito de “presentidade”, como algo inerente à arte de caráter mais ambiental ou instalativa. Nela, a percepção do espaço não pode ser desatrelada da noção de tempo, aproximando-o da própria ideia de virtualidade. O entendimento da obra só acontece, portanto, a partir do movimento de quem a observa e constrói na memória uma experiência perceptiva. É como se o tempo da experiência começasse a fazer parte do que antes era entendido única e exclusivamente como um corpo escultórico.
Para além, a ausência do nome, do gesto de titular os trabalhos, é algo que me parece também de alguma relevância ao se construir um vocabulário crítico e poético sobre a produção do artista. Há nessa nova série, bem como na grande maioria das obras do artista (aliás, prefiro me referir à produção com o uso do termo trabalho) uma razão objetiva entre o material utilizado e o resultado que se alcança a partir do gesto artístico. É algo que poderíamos classificar como uma translação: uma espécie de movimento em torno da matéria que passa nos revelar um outro lugar, simbolicamente já longe da condição seriada da indústria. Ao contrário do que muitos imaginam, não há por parte do artista qualquer deslumbramento pela força avassaladora dos sistemas produtivos do capitalismo, mas, sim, uma vontade de fazer uso dos recursos deles como ferramenta ou dispositivo na construção de seus trabalhos.
Na medida em que seus trabalhos passam a ocupar um determinado espaço e construir novos vazios, explorando inclusive os valores de escala, acontece um natural distanciamento da própria noção de objeto de arte, algo que era caro ao minimalismo de outrora. Em cada um dos tantos trabalhos produzidos nos últimos anos pelo artista, há uma coerência objetiva que o artista carrega consigo, o que ele mesmo chamou de uma batalha permanentemente de oposição à narrativa. O que não quer dizer que o artista queira em si retirar qualquer consequência expressiva da obra ou apenas operar em uma dimensão contemplativa.
Nesse sentido, é relevante retomar uma leitura que me parece significativa para compreendermos a produção do Fajardo: como diria a professora e crítica de arte Sônia Salzstein, o artista expressa uma “poética da distância” de maneira continuada. É como se sua produção artística ganhasse com o decorrer do tempo uma projeção exterior, muito além de sua explosão escalar e dimensional. Historicamente, é algo que passou a comparecer com maior evidência desde a virada para os anos 1980. Se o trabalho continuado das superfícies materiais e suas riquezas compositivas era a equação inicial para a sua produção mais abstrata, ao longo das últimas décadas cada ação do artista passou a ter uma condição ainda mais integradora e propositora de espaços, tensionando as próprias fronteiras do conceito de instalação e da ideia de site-specificity.
Entre o real e a reflexão, uma arte quase cinematográfica
Dar responsabilidade ao outro, fazer dele agente ou ator no contexto da obra de arte é uma operação que Fajardo realiza de maneira muito clara. É como se no ambiente em que o trabalho passa a influir surgisse um lugar de indefinição, uma espécie de passagem imprecisa, quase difusa. Não quer dizer que há na formulação do trabalho, ou em sua constituição a vontade da mágica ou do efeito cenográfico que cria imagens simuladas. É, na verdade, uma intenção oposta a isso.
O real é de sobremaneira tão significativo, que fica impossível capturar a obra com algum sentido de pureza. É nesse ponto que enxergo um tangenciamento possível com a linguagem cinematográfica de ordem mais experimental, enunciada aos fins dos anos 1960, o que coincide historicamente com o momento formativo e seminal da produção do artista. Não falo apenas das experiências da videoarte que emergiram no início dos anos 1970, mas da força do cinema em longa-metragem do qual os franceses foram expoentes. Cito, por exemplo, a radicalidade da obra de Jean-Luc Godard, que culminaria, por exemplo, em filmes como “Adeus à linguagem”.
Fajardo, ao longo de mais de cinco décadas, transitou muito bem entre o desenho, a pintura, a fotografia e a escultura, abraçando, enfim, um lugar inter-relacional das linguagens. Em pari-passu, sua trajetória formativa e profissional teve igual importância em sua caminhada artística: a arquitetura como ensino formal, as aulas de desenho com o Wesley Duke Lee, o Grupo e a Galeria Rex; o espaço de convívio e experimentação artística junto à Escola Brasil, onde construiu diálogo com José Resende, Frederico Nasser e Luiz Paulo Baravelli; a longeva atuação como professor e, consequentemente, como pesquisador. A propósito, nessa plataforma histórica de experiências, a pesquisa me parece ser a sua fronteira limite da sua própria reflexão. E, atrelado a isso, o cinema me parece assumir alguma relevância, além de ser a própria linguagem cinematográfica um marco de sua geração.
Por isso, em nossas poucas conversas, um assunto que se apresenta como singular em sua fala e em sua prática é a aproximação dialógica com o cinema, especialmente com aquele que rompeu os limites da narrativa, com o foco no espelhamento do roteiro. O que o jogo de espelhos e vidros enquadrados em cada objeto do artista promove é a possiblidade de construir imagens de ação da presença em vida no espaço. Assim como no cinema experimental, é o que capturamos, a partir da experiência de cada um de nós, que se sobressai enquanto obra viva capturada em memória.
Ao observar a sala expositiva, identifica-se a força do espelhamento como entidade expressiva na obra do artista. Concomitantemente, temos deflagrado pelos trabalhos a conformação da infinitude e imprecisão do que sabemos através reflexão. O nosso próprio espelhamento nas obras é exercício para o nosso olhar: trata-se da ilha de edição particular de cada um. Assim como Godard nos profetizou poeticamente, cabe a nós a manutenção de um espaço para a imprecisão ou indefinição.
Afinal, é com o resquício da dúvida e inexistência da prova material que damos sentido à vontade da busca. A reflexão e o seu registro, portanto, é muito mais recurso de ampliação da dúvida do que um resultado documental. Há, ao fim e ao cabo, uma ficção que nos cabe no encontro com a obra de arte. Se assim for, estejamos abertos aos labirintos espaço-temporais de Carlos Fajardo. Como sentenciou o pensador italiano do século XVI Giordano Bruno, que ousou apontar os erros da teologia na compreensão do mundo, “se non é vero, é bene trovato”.
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(1)Primeiros versos do livro do cineasta e pensador francês, recentemente publicado no Brasil. É com uma espécie de alerta poético que ele começa a contar, em seu primeiro capítulo das “Histórias(s) do cinema”. O livro é, na verdade, uma espécie de reflexão que irá compor o filme homônimo, dividido em capítulos, feito especialmente para a TV. Referência à edição/tradução brasileira:
GODARD, Jean-Luc. História(s) do cinema, (da série Círculo de Poemas). São Paulo: Luna Parque, Fósforo, 2022.
(2)Este ensaio está dividido em duas partes principais: trata-se de um princípio formal análogo ao jogo compositivo de cada uma das doze obras da série apresentada pelo artista, em que são constituídos no interior de cada uma delas uma paridade de cores.
(3)É a expressão utilizada pelo crítico e professor norte-americano Jonathan Crary para designar a fase do capitalismo em que até o ambiente do sono passa a ser ameaçado. Nesse diagnóstico em que somos dominados 24 horas por dia, 7 vezes por semana, não existe mais empecilho para à ideia de acumulação ilimitada.
(4)Como me explicou o próprio artista, trata-se de uma expressão da cultura italiana que comparece em situações urbanas e arquitetônicas como também em música já secular. A referência mais precisa é a da presença da frase “Forse che sì, forse che no” gravada várias vezes no contexto de um labirinto ilustrado no forro do Palácio Ducale de Mântua, na região da lombadia, Itália. Há, portanto, uma clara alusão a ideia de a vida é sempre posta diante de um destino labiríntico sob o qual não temos todas as certezas pragmáticas do fluxo da vida.